Uma das dúvidas mais recorrentes entre cantores e professores de canto, especialmente no universo do canto popular e contemporâneo, gira em torno da administração da pressão vocal ao se aproximar e atravessar as famosas “notas de passagem” ou o passaggio. A pergunta que ecoa é: devemos diminuir a pressão ao transitar para notas mais agudas, como do Si3 para o Dó4 em um teclado de 5 oitavas (ou Si4 para Dó5 em um piano)?
Essa questão, abordada recentemente em um webinar da UNIACEV com o Prof. Ariel Coelho, especialista em Antropofisiologia Vocal, nos convida a uma reflexão profunda sobre a pedagogia vocal e as nuances fisiológicas da produção sonora. Vamos desmistificar esse conceito e entender como a ciência vocal pode nos guiar para uma performance mais eficiente e saudável.
O Cenário Comum: A Tendência de Aumentar a Pressão
Muitos cantores, ao se depararem com a necessidade de alcançar notas mais altas, instintivamente recorrem ao aumento da pressão subglótica (a pressão do ar vinda dos pulmões) e, consequentemente, buscam um incremento na pressão psicoacústica (a percepção de volume). Essa tentativa de “empurrar” a voz para cima é uma estratégia comum para compensar instabilidades ou para atingir uma determinada intensidade sonora.
No entanto, essa abordagem pode levar a uma série de desafios, incluindo:
- Fadiga muscular acelerada.
- Riscos técnicos, como quebras vocais indesejadas.
- Engessamento da biomecânica laríngea, limitando a plasticidade e a liberdade vocal.
- Qualidade tímbrica comprometida.
A Fisiologia da "Passagem": Entendendo a Sinergia Muscular
Para responder à pergunta inicial, precisamos primeiro entender o que acontece fisiologicamente na região de transição. O Prof. Ariel Coelho destaca que, ao adentrarmos a região que ele denomina de “sinergia secundária de adutores primários” – que compreende aproximadamente as notas entre Mi3 e Si3 (teclado 5 oitavas) ou Mi4 e Si4 (piano) – ocorrem mudanças dinâmicas significativas.
Nesta zona:
- O músculo CT (cricotireóideo), responsável pelo estiramento das pregas vocais para produção de agudos, torna-se preponderante. Isso não significa que o TA (tireoaritenóideo) esteja inativo, mas a dinâmica de trabalho entre eles se altera.
- O estiramento das pregas vocais se intensifica. Esse estiramento, dependendo do comando de mais ou menos massa vibrante, já contribui naturalmente para um incremento da pressão sonora na fonte, ou seja, nas próprias pregas vocais.
- Importante: Só o fato de adentrar essa região de sinergia secundária já promove um aumento natural da pressão sonora, mesmo sem que o cantor aumente ativamente a pressão subglótica. A voz, por si só, já ganha mais "brilho" e projeção devido às mudanças na configuração vibratória.
A Armadilha do Excesso de Pressão
Se a região já promove um aumento natural da pressão sonora, e o cantor ainda adiciona mais pressão subglótica na tentativa de estabilizar ou “alcançar” a nota, o resultado é um ciclo de esforço desnecessário. Essa compensação pode, paradoxalmente, gerar mais instabilidade e os problemas citados anteriormente.
O Papel do Microfone no Canto Contemporâneo
Para cantores populares, modernos e contemporâneos, o microfone é uma extensão da técnica vocal. Ele atua como um transdutor, convertendo energia mecânica (a vibração sonora) em energia elétrica, que é então amplificada. A função primordial do microfone é maximizar a energia acústica gerada, eliminando a necessidade do cantor de produzir volumes excessivos apenas com o “pulmão”.
Com o uso consciente do microfone, o cantor pode se concentrar em nuances, qualidades tímbricas e controle técnico, sabendo que a amplificação garantirá a projeção necessária.
A Estratégia Inteligente: Desacelerar a Pressão Antes da Passagem
Então, qual a abordagem correta?
- Consciência da Pressão Natural: A partir do momento em que se adentra a região de sinergia secundária (por volta de Mi3/Mi4), o cantor deve ter a consciência de que não precisa aumentar ativamente a pressão. A própria fisiologia da região já fará parte desse trabalho.
- “Desacelerar” a Pressão Progressivamente: Já a partir de notas como Mi3, Fá3, Sol3 (ou suas correspondentes uma oitava acima no piano), é interessante começar a “desacelerar a pressão”.
- Atenção: “Desacelerar” aqui não significa “tirar o pé só acelerador” bruscamente ou perder o apoio, mas sim estabilizar o incremento de pressão subglótica e psicoacústica. É como manter uma velocidade constante em vez de continuar acelerando.
- Responsabilidade Laríngea: Ao não lançar mão de estratégias de excesso de pressão, a demanda e a responsabilidade pelo ajuste fino e pela estabilidade recaem sobre a musculatura laríngea. Com o treinamento adequado (habilitando o sistema de pressurização transglótico), a laringe não só dá conta do recado, como também “agradece” por não receber o “impacto” de uma pressão excessiva vinda de baixo.
- Transição Suave: Ao chegar na transição crítica (Si3-Dó4, por exemplo), se o cantor já veio gerenciando e “desacelerando” o incremento de pressão, a passagem tende a ocorrer de forma muito mais suave, sem a necessidade de uma manobra brusca ou de um “cuidado” excessivo naquele ponto específico. A “passagem” se dilui em um processo mais gradual.
Conclusão: Cante com Inteligência, Não Apenas com Força
Portanto, a resposta para a pergunta inicial é: sim, o raciocínio de não continuar aumentando a pressão ao se aproximar das notas de passagem está correto, e mais, é fundamental. A chave está em desenvolver a consciência corporal e auditiva para perceber o incremento natural de pressão sonora que ocorre nessas regiões e, a partir daí, gerenciar a pressão subglótica de forma inteligente.
Ao invés de “empurrar” a voz, o cantor contemporâneo, munido do conhecimento da Antropofisiologia Vocal e do uso técnico do microfone, aprende a “surfar” nas mudanças fisiológicas, permitindo que a laringe trabalhe com eficiência e saúde. Isso resulta em maior controle, plasticidade, longevidade vocal e, claro, uma expressividade muito mais rica e autêntica.
Na UNIACEV, essa abordagem científica e prática é o pilar dos nossos cursos de formação, capacitando cantores e profissionais da voz a alcançarem seu máximo potencial de forma consciente e sustentável.